sábado, 3 de janeiro de 2009

Reportagem: Aves madrugadoras do Parque Biológico de Gaia


Há dois anos a funcionar no Parque Biológico de Gaia, a anilhagem de aves contribui para a preservação da ilha verde do Grande Porto.
Adriano Cerqueira

O projecto de anilhagem de aves no Parque Biológico de Gaia completou dois anos em Outubro. A prática de recolha para identificação e estudo de aves já decorre há vários anos no parque, mas apenas em 2006 é que Rui Brito e António Pereira, ornitólogos responsáveis pelo projecto, deram inicio a esta actividade de forma regular.


“Há 25 anos que se faz anilhagem no parque, mas de há dois anos para cá decidiu-se fazer com carácter regular, para melhor conhecer a avifauna (população de aves)”, esclarece Nuno Oliveira, Presidente do Conselho de Administração do Parque Biológico de Gaia.

Rui Brito explica que “qualquer projecto de anilhagem surge muito por parte dos anilhadores, propusemos ao parque começar a anilhar e o parque aceitou.” O biólogo de profissão salienta a importância da recém criada Associação Portuguesa de Anilhadores de Aves (APAA) já que esta “centraliza em si esse tipo de actividades e projectos, a nível de todo o país, de modo a alargar ao máximo a actividade”. “Até aqui não havia nenhuma organização, há a Central Nacional de Anilhagem (CNA) que é um organismo que faz parte do Instituto de Conservação da Natureza e Biodiversidade (ICNB) que atribui as credenciais e gere as autorizações e as questões das anilhas, mas a nível da pró-actividade e da proposta de projectos não existia nenhuma entidade”, confessa.

Para o desenvolvimento e manutenção do projecto o Parque Biológico de Gaia disponibiliza as instalações da Quinta do Chasco e um orçamento anual de cerca de 10 mil euros, destinados ao investimento em material e divulgação da actividade. Esta iniciativa também aposta na formação de futuros anilhadores. Joana Nunes, mestre em Ecologia Ambiental, é um desses casos. Explica que “para se trabalhar a sério com pássaros precisas de uma licença, mas para isso é preciso anilhar mais de 100 espécies diferentes,” acrescenta ainda que “o título de anilhador é muito importante no currículo, já que é bastante difícil ser-se capaz de identificar pássaros rapidamente, e é claramente importante a ajuda de pessoas especializadas para o estudo de conservação”.
A actividade tem início uma hora antes do nascer do Sol

Entre os alunos a receber formação, um dos membros que mais cedo se iniciou no projecto é Pedro Andrade. O aluno, de Biologia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP), conta que tomou conhecimento da anilhagem através de Jorge Gomes, responsável pela divulgação do parque junto dos visitantes. “Ele falou comigo e com o meu irmão, sobre a anilhagem e projectos da Estação de Esforço Constante. Nós começámos a vir ao início só para ver como é que era e então propuseram-nos a possibilidade de fazer voluntariado e de recebermos formação. Aceitámos e temos vindo todos os primeiros e terceiros sábados de cada mês para aprender mais e para receber alguma formação. Vamos também tentar receber uma credencial que no futuro nos permita ter a independência para sermos anilhadores”, refere.

Pedro Andrade também é responsável pelo blogue onde são colocadas todas as informações recolhidas após as sessões de anilhagem. “O projecto do blogue surgiu inicialmente para melhorar a divulgação da anilhagem. Normalmente esta também é feita pela revista oficial do parque que é a Revista Parques e Vida Selvagem. Todos os sábados, no fim de uma anilhagem, publicamos os resultados, e mais algumas notícias e fotos, para, desta forma, o público em geral saber o que é que nós estamos a fazer.”

Contudo, a recolha e identificação de aves é por vezes criticada pelo público não familiarizado com a actividade. O facto das aves sofrerem durante o processo é uma das acusações comuns. António Pereira assegura que as aves não sofrem qualquer tipo de dor enquanto são anilhadas. “As pessoas às vezes quando ouvem as aves a dar um grito de alarme pensam que é como os mamíferos que choram ou gritam, mas não, as aves não fazem isso, tentam é comunicar o que se está a passar. Os gritos de alarme servem para avisar as outras aves que existe algum perigo, mas ela própria não está em sofrimento”, explica.

Todos os primeiros e terceiros sábados de cada mês, Rui Brito e António Pereira acompanhados por um grupo de estudantes em formação e de interessados em anilhagem, deslocam-se ao Parque Biológico de Gaia para iniciar a actividade. O processo começa cedo, com a montagem das redes sempre uma hora antes do nascer do sol. No total são quatro as redes espalhadas pelo complexo, as redes Matos, Amieiras, Ponte de Madeira e Tabua, todas elas baptizadas de acordo com as características do local onde são colocadas. As redes referidas são sempre montadas nos mesmos locais e posicionadas em zonas estratégicos do parque, desta forma torna-se possível a recolha de dados com exactidão sobre as espécies que nidificam no parque. Os dados sobre as espécies capturadas são depois analisados pela Estação de Esforço Constante, projecto com o principal objectivo de obter informação que possa ajudar a entender e a explicar as alterações nas populações de aves, através de um programa de capturas regulares durante a época de reprodução, em locais e habitats específicos.

A recolha e análise de aves é relativamente simples, mas algo que exige o máximo cuidado. Entre intervalos de uma hora, o grupo desloca-se a cada uma das redes para verificar se alguma ave foi capturada. Se tal acontecer, os animais são retirados com cuidado das redes para evitar qualquer sofrimento. Segundo António Pereira as redes são “bastante seguras”, “por vezes as aves ficam com a língua presa e ao tentarem se libertar sofrem ligeiros ferimentos, mas fora isso raramente se magoam”. Após o pássaro ser retirado da rede é colocado num saco opaco. Rui Brito diz que “as aves são transportadas em sacos opacos, para elas virem mais calmas e o menos stressadas possíveis”.
Jorge Gomes:"O Parque é uma ilha verde, onde as aves, insectos migratórios e toda esta natureza aqui se vem encaixar"

O período de tempo entre verificações das redes é ocupado a processar os animais recolhidos. Primeiro procede-se à identificação da espécie e à colocação da anilha respectiva. As anilhas têm tamanhos específicos adaptados a cada espécie de ave. Há uma listagem de todas as espécies que podem ser capturadas, e a cada uma corresponde uma anilha específica. Cada anilha tem um código alfanumérico que serve como bilhete de identidade da ave que a recebe, o que permite a posterior identificação do animal no caso de ser recapturado ou encontrado morto. Quando a ave já se encontra anilhada é feita a recolha dos dados biométricos – peso, sexo, idade, envergadura da asa, comprimento do bico, nível de gordura e tipo de pelagem – e, finalmente, é libertada para o exterior.

Questionado sobre a frequência de recaptura de pássaros já anilhados, Rui Brito responde que “é comum acontecer” e salienta que “o objectivo da anilhagem é exactamente recapturar aves, quer de cá (do Parque Biológico) – o que nos permite conhecer a história da ave e ir acompanhando-a – quer aquelas que vêm a migrar e que passam por cá”.

Quanto ao sucesso dos controlos, Rui Brito afirma que “temos essencialmente aumentado o conhecimento sobre a avifauna do parque e descoberto algumas histórias engraçadas de aves que, nomeadamente, caiem sempre na mesma rede, à mesma hora, isto ao longo de dois anos”. O ornitólogo salienta que nos dois anos de existência da actividade já surgiram resultados “muito interessantes”, como a descoberta de espécies que não se sabia que nidificavam no parque e a recolha de dados mais pormenorizados sobre a vida das espécies que habitam no Parque Biológico.
António Pereira: “É sempre bom ver que um dos objectivos a que nos propusemos, que foi conseguir divulgar a actividade e trazer mais pessoas, começa a ter os seus frutos”

Em paralelo com a iniciativa, Rui Brito e António Pereira colaboram com outros projectos associados à área. A recolha de carraças das aves que são enviadas para o Instituto Ricardo Jorge, encarregue de estudar as doenças trazidas pelas espécies migratórias e o estudo da história genética do Pisco de Peito Ruivo, que se insere numa colaboração entre vários países europeus, são as principais actividades associadas à anilhagem. A educação ambiental e sensibilização do público para a causa de preservação e estudo das espécies de aves é também um dos principais objectivos desta actividade.

O próximo passo do projecto passa pela elaboração de um relatório com o balanço dos primeiros dois anos. “Vai ser feito um relatório e entregue aqui no parque, depois à partida seguir-se-á uma publicação referente a isso. A partir daí o parque fará a divulgação e a ideia será publicar em algum jornal científico”, revela Rui Brito. No relatório vão constar todas as espécies capturadas desde Outubro de 2006 e dados relativos ao número de pessoas que participaram na formação de anilhadores.

Jorge Gomes salienta a importância da iniciativa já que permite conhecer a população de aves e conservá-las numa área rodeada de prédios. O responsável pela revista do Parque Biológico afirma que a reserva natural “é uma ilha verde, onde as aves, insectos migratórios e toda esta natureza aqui se vem encaixar,” salientando ainda a importância de se ter “noção do nosso património natural e da conservação destes espaços com os seus habitats naturais”.

O Parque Biológico de Gaia promove projectos como a monitorização sistemática de invertebrados, peixes, vertebrados terrestres e plantas, nos quais a anilhagem de aves se insere, em simultâneo, como actividade científica de monitorização da avifauna e como actividade educativa. Nuno Oliveira acrescenta que “todo esse trabalho vai ser alargado a outros locais de Gaia”.

Quanto ao futuro da anilhagem de aves, o Presidente do Conselho de Administração do Parque Biológico diz que passa por “continuar e alargar-se, quer em locais, quer em regularidade”. Já Rui Brito traça como meta o “objectivo máximo” da Estação de Esforço Constante, que passa por ter o maior número de anos possível de anilhagem de forma a perceber as tendências populacionais. “A ideia é pelo menos 10 anos contínuos, para conseguirmos ter mais dados e mais pessoas de forma a criar mais grupos de anilhagem”, afirma.

A anilhagem de aves é uma actividade de várias décadas que se destaca pela ajuda no estudo das populações de aves num dado local. Acerca da sessão de 18 de Outubro, António Pereira refere que “tivemos muitos participantes e é sempre bom ver que um dos objectivos a que nós nos propusemos, que foi conseguir divulgar a actividade e trazer mais pessoas para uma actividade que era algo restrita, começa a ter os seus frutos”.

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